Enchente de 1974: O relato de um sobrevivente
O mês de março de 1974 iniciou com um calor excessivo, que logo deu início a chuvas frequentes. A partir do dia 22, as chuvas se tornaram mais intensas nos costões da serra, fazendo com que o nível do Rio Tubarão subisse. A Vila Presidente Médici, a Comasa, foi a primeira comunidade do município a ser atingida. Outros bairros também começavam a sentir os efeitos das águas deixando diversos desabrigados. A situação persistiu durante todo o dia 23. A ponte pênsil, localizada em frente à Unisul, foi levada pelas águas. No dia 24 o nível do rio havia estabilizado e muitas pessoas acabaram retornando para suas residências acreditando que tudo havia acabado. No entanto, no mesmo dia, a chuva retornou com toda a intensidade. Muitos dormiam e acordaram com a água entrando em suas casas.
A enchente de março de 1974 causou pânico em toda a população, até mesmo em quem não foi atingido pelas águas. O medo da reconstrução ocasionado pelo desânimo, pelas lamentações, pelas perdas e a falta de perspectivas de recomeçar, tomou conta de toda a população. Várias pessoas se sentiram acuadas e amarradas ao pessimismo de que nada mais seria possível em Tubarão. Muitos moradores abandonaram a cidade em direção aos municípios vizinhos e outros persistiram mesmo em meio a catástrofe, como é o caso da família de José Carlos Rosick.
No dia 1° de janeiro deste ano o tubaronense partiu deixando saudades em familiares e amigos. Ao longo de seus 78 anos de vida, José sempre recordou os principais fatos ocorridos com ele e com Tubarão durante a fatídica tragédia que acarretou o município. No ano de 2014, em uma seção de reportagens especiais realizadas pelo Departamento de Comunicação, José Carlos compartilhou sua história e os acontecimentos que ocorreram em seguida ao levante das águas.
“O cenário era de destruição eminente. Parecia que a cidade havia sido bombardeada. Ruas cobertas de lodo e entulhos. Casas destruídas ou arruinadas, sem energia elétrica, sem água, sem comunicação. A catástrofe foi tão grande que eu não consegui localizar a minha casa. Fiquei vagando até encontrar a bicicleta da minha filha no topo da laranjeira que ficava no meu terreno. Foi nesse momento em que entrei em desespero: quando vi que da minha casa só havia restado um pedaço do que era a cozinha. Foi um dos acontecimentos mais tristes da minha vida. Não conseguia mais imaginar uma vida para mim em Tubarão. Queria ir embora da cidade e não voltar nunca mais. A persistência da minha família em querer a cidade como lar foi o que me motivou a ficar”, recorda José Carlos.
Após a tragédia, era hora de contabilizar os prejuízos e partir para a reconstrução. A maioria dos atingidos ficava desolada quando encontravam suas casas. Mas a palavra de ordem era reconstruir. Um comando militar foi instalado no Grupo Hercílio Luz onde decretava ordens e mantinha a organização da cidade em meio ao caos. Toques de recolher foram instaurados para evitar saques. Postos de distribuição de alimentos e mantimentos foram organizados. As filas iam se formando até para se conseguir água.
“Minha esposa e eu nos dividíamos para acompanhar todas as entregas de mantimentos e alimentos. Uma vez fui informado de que havia distribuição de carne em frente a escola Mauá. A fila era enorme. Quando chegou a minha vez só havia me restado um pedaço de osso. Naquela situação nada poderia ser recusado. Cachos de banana também estavam sendo doados. Nessa mesma fila encontrei o artista Willy Zumblick. Na tragédia não havia distinção de classe social. Todos estavam passando pela mesma dificuldade e precisavam de ajuda”, comenta o aposentado.
Nas ruas centrais da cidade foi proibido o trânsito de veículos particulares. Enquanto o Exército mantinha o comando da cidade, cabia a prefeitura a organização dos sepultamentos. Corpos encontrados sem identificação eram enterrados na vala comum que ficava localizada nos fundos do cemitério municipal.
“Tratores que faziam a limpeza da cidade encontravam quase todos os dias corpos de vítimas, muitas sem identificação. Certo dia, fazendo a limpeza do lodo com uma enxada encostei em alguma coisa. Retirei a superfície da lama e encontrei o corpo de um adolescente, filho de um conhecido. Foi um momento chocante, mas já era o esperado. Diversos corpos eram retirados dos fundos da lama densa deixada pela enchente”, lembra José.
Nesta paisagem de desolação, com os ânimos abatidos, uns sofrendo a dor da perda de seus entes queridos, outros a amargura da perda dos bens materiais, muitos acreditavam que a cidade não iria se reerguer ou que isso levaria muitos anos para acontecer. No entanto, em meio ao sofrimento, ocorreu um fenômeno superior à catástrofe: a solidariedade. A grande participação desse fenômeno veio da população. Caminhões chegavam carregados de donativos vindos de diversas partes do país. A manifestação também elencou desde o governo federal e estadual, até centenas de instituições.
“Logo após a tragédia morávamos no que havia sobrado da nossa casa. Não havia nos restado mais nada. Só conseguimos nos vestir com doações de roupas. Utensílios não tínhamos mais nenhum. Um tempo depois, a Rede Ferroviária ofereceu um empréstimo para os funcionários mais atingidos pela enchente. Isso me auxiliou na construção de uma nova casa. Para a compra de utensílios um empréstimo também foi oferecido por um amigo comerciante. Se não fossem as doações e os auxílios que recebi do governo, de parentes e conhecidos nós não teríamos conseguido nos reerguer”, afirma José Carlos.
Hoje a enchente é apenas uma memória perdida em 42 anos de lembranças. Os resultados traumáticos da tragédia ainda estão presentes na memória de muitas pessoas. Depois da destruição, dos escombros, da lama, das lamentações, contagem da perda pessoal de cada um, o espírito de recomeço reinou e isso é a grande lição que a enchente de março de 1974 deixou como herança a ser preservada por cada um.
“Quatro décadas se passaram e o orgulho de ser um sobrevivente permanece” – José Carlos Rosick (in memorian).
Fonte: Decom/PMT